Por José Eduardo
Introdução
O termo tem sido usado para estigmatizar pessoas severas, sem
afeições amorosas ou retrogradas, mas isto é um engano. O puritanismo nos
deixou um legado Bíblico, um fervor cristocêntrico e uma submissão a Deus cheia
de alegria. Por conta disto os puritanos desenvolveram uma enorme afeição pela
pregação e afeto com seus ouvintes. Pastores devotados as suas congregações,
que estavam preocupados com o discipulado da igreja e o desenvolvimento da
comunidade em redor da igreja. Não é à toa que os "pais peregrinos"
ao desembarcarem na América do Norte preocuparam-se com a formação do seu povo
construindo escolas e universidades com Havard, Princeton e Yale. Mas é
verdade, quanto ao seu apego primordial, as Escrituras, isso era admirável e
inegociável, o que com toda certeza os tenha levado a rotulações, tais como
intransigentes e sua vida cotidiana tratada por muitos de nós como atrasada.
Porém, é da voz de um anglicano, aquilo que nos faz lembrar o que é ser um
puritano. Este anglicano foi John Trapp, e disse ele: "Onde a Bíblia não
tem voz, não devemos ter ouvidos."
Conceito e Histórico
O Puritanismo se destaca por ser um movimento em prol das
Escrituras reafirmando-as como suficiente para instrução a piedade. O movimento
ganha forma ao lutar por uma reforma completa da Igreja da Inglaterra no século
XVI, no período de reinado de Elizabete I (1558). Cristãos ingleses neste
período procuraram “purificar” a Igreja da Inglaterra, daí vem o termo
puritano, um apelido criado para tentar diminuir o caráter e as intenções
destes cristãos ingleses. Mas esta tentativa de diminuição não funcionou. Quem
não concorda que nossa busca pela pureza da igreja é o nosso dever? Neste
sentido, se alguém nos chamar de puritanos porque insistimos na pureza, então
isto não é uma ofensa. Portanto, pensar no puritanismo é considerar que ele é
uma expressão não só de mera purificação com o abandono de certos hábitos, mas
também de buscar conhecer a vontade de Deus, da necessidade que temos de nos
"amarrar" a Palavra de Deus para que nela tenhamos segurança real.
Por isso os puritanos sempre trabalharam incessantemente na leitura doméstica
das Escrituras, regulando a vida no Evangelho, o culto público modesto como uma
forma de deixar sempre as vistas e aos ouvidos dos presentes a exposição da
Bíblia, e o caráter dos crentes para testemunho das verdades Bíblicas e de
Jesus Cristo.
As asseverações na Igreja Inglesa Protestante (anglicanismo) iam
das indumentárias que os puritanos assim consideravam desnecessárias que
remetiam a igreja aos exageros litúrgicos do catolicismo romano, além dos
severos Seis Artigos, impostos por Henrique VIII (em 1539) com punições para os
transgressores (“o açoite sangrento de seis cordas”), estes elementos foram
profundamente combatidos pelos puritanos. Muitos foram martirizados neste
período como: Hugh Latimer (em 1555), Nicholas Ridley (em 1555) e Thomas
Cranmer (em 1556). Ainda outros elementos de culto como sinal da cruz em
batismos e o ato de ajoelhar-se eram tidos como desnecessários, isto incluía ao
gesto comum de se ajoelhar diante dos elementos da ceia. Estes pontos eram
combatidos, pois sugeriam uma reverência a objetos de culto onde quem deve
receber toda a nossa reverencia é Deus. Partindo deste princípio, a modéstia do
culto puritano apontava para poucas expressões, diferente dos costumeiros atos
de levantar e sentar nas missas romanas e anglicanas, que se propunham a
encucar nos fieis que isto representava um sinal de respeito a Deus, enquanto
os puritanos declaravam que se fazia necessário uma inclinação de coração. Mas
não subestimemos a simplicidade puritana do culto. A particularização do
cântico dos Salmos em seus cultos demonstrava o zelo pela Escrituras. Seus
sermões eram meticulosamente estudados pela família, o que isto nos leva a
pensar o quanto cada cristão e cada família eram comprometidos com as Palavra
de Deus. Estas são singularidades que os fizeram gigantes em seu tempo.
John Knox[1], um dos pais puritanos perseguidos, ao expor suas
posições quanto a modéstia na adoração conclamou um dos solas da Reforma – sola
scriptura. “Somente a Escritura deve ser o guia para a adoração. Todas as
práticas e observâncias na igreja que não têm autoridade escriturística, devem
ser abolidas. ” Estas palavras de Knox deixa claro que o movimento buscava uma
pureza objetivada naquilo que as Escrituras instruíam os crentes. Considerando
que a ceia e o batismo são obras ordenadas para um fim de anunciar aos homens a
morte e ressurreição do Cristo e a aclamação de indivíduos na igreja que Cristo
comprou, escreve Rutherford[2]: “o que quer que nos faça perfeitos e
perfeitamente habilitados para toda a boa obra, e essa é a finalidade para a
qual foi escrito este trecho, que qualquer Timóteo, ou pastor fiel pode saber
como deve proceder na Casa de Deus ... deve constituir uma base perfeita de
disciplina, que não varia, sem fluxo e refluxo e sem alteração conforme o
governo civil, as leis, os hábitos e os costumes dos homens. Mas as Escrituras
de Deus assim instruem todos os membros da Igreja visível, tanto os governadores
como os governados (2 Tm.3:16,17, 2 Tm.3.14,15)”.
O Perfil Puritano
Alderi Souza[3] apresenta dentro do movimento um perfil e
características gerais dos puritanos:
Terminologia
Não-conformistas: esse termo surgiu na história inglesa quando
puritanos e separatistas não quiseram aderir à Igreja da Inglaterra (oficial)
desde 1660 até o Ato de Tolerância (1689). Não-conformidade é a atitude de não
se submeter a uma igreja oficial.
Separatistas: termo aplicado ao puritano inglês Robert Browne
(c.1550-1633) e seus seguidores, que se separaram da Igreja da Inglaterra. Mais
tarde foi aplicado aos congregacionais ingleses e outros grupos que formaram
suas próprias igrejas.
Não-separatistas: os puritanos anglicanos, aqueles que não
queriam separar-se da igreja oficial, mas procuravam reformá-la. Os fundadores
de Salem e Boston (1629-1630) estavam nessa categoria.
Independentes: nos séculos 17 e 18, os adeptos da forma de
governo congregacional, em contraste com o governo episcopal da igreja estatal
inglesa.
Dissidentes: aqueles que se retiraram da igreja nacional da
Inglaterra (anglicana) por motivos de consciência. O termo inclui
congregacionais, presbiterianos e batistas.
Características gerais
Os “não-conformistas”, como também eram chamados, em geral eram
ministros com educação universitária, oriundos principalmente de Cambridge,
embora também houvesse leigos ardorosos entre eles.
Entendiam que a Igreja Inglesa devia adotar como modelo as igrejas
reformadas do continente.
O puritanismo influenciou a tradição reformada no culto, governo
eclesiástico, teologia, ética e espiritualidade. Quatro convicções básicas: (1)
a salvação pessoal vem inteiramente de Deus; (2) a Bíblia constitui o guia indispensável
para a vida; (3) a igreja deve refletir o ensino expresso das Escrituras; (4) a
sociedade é um todo unificado.
O sentido original do termo “puritano” apontava para a
purificação da igreja, isto estava óbvio à medida que os puritanos queriam descartar
os elementos arquitetônicos, litúrgicos e cerimoniais que consideravam
conflitantes com a simplicidade Bíblica. Por exemplo, eles objetavam o sinal da
cruz no batismo e a genuflexão para receber a Santa Ceia.
Ao invés de paramentos elaborados (sobrepeliz), eles preferiam
uma toga preta que simbolizava o caráter do ministro como um expositor da
Bíblia no culto.
Queriam que cada paróquia tivesse um ministro residente capaz de
pregar. Para alcançar esse objetivo, promoviam reuniões de ministros para ouvir
sermões e receber orientação pastoral (suprimidas por Elizabete).
Sofrendo oposição dos bispos e estando comprometidos com uma
eclesiologia que dava ênfase à igreja como uma comunidade pactuada, muitos
puritanos rejeitaram o episcopado.
Thomas Cartwright promoveu o presbiterianismo (1570). Robert
Browne, mais radical, advogou um sistema congregacional e defendeu a imediata
separação da “corrupta” Igreja da Inglaterra (1582). Alguns de seus seguidores
“separatistas” foram para a Holanda.
Congregacionais mais moderados, conhecidos como “independentes”,
não chegaram a defender a separação. Eles influenciaram os puritanos da Baía de
Massachusetts e se tornaram a corrente principal do congregacionalismo inglês.
Outros puritanos, como Richard Baxter (1691), queriam um
“episcopado atenuado” que associava características presbiterianas e
episcopais.
Os puritanos não estavam interessados somente na purificação do
culto e do governo eclesiástico. Todo o corpo político também precisava de
purificação. Apoiando-se em Martin Bucer e João Calvino, eles insistiram na
criação de uma sociedade cristã disciplinada. Achavam que uma nação inteira
podia fazer uma aliança com Deus para a realização desse ideal. Esperanças
milenaristas e o exemplo do Israel bíblico os impeliram nessa direção.
O puritanismo prático na família, na Igreja e na sociedade
Ao ler sobre os puritanos não é difícil concluir que eles foram
notáveis cristãos práticos. Sobre tudo, eles eram práticos no desenvolvimento
de sua teologia na família. A forte aplicação da teologia do pacto e a
responsabilidade dos pais na formação de seus filhos podem ser descrita na
narrativa particular de Joel Beeke em seu livro Adoração no Lar.
“Pai, a lembrança mais remota que tenho é a de lágrimas escorrendo
pelo seu rosto enquanto você nos ensinava sobre como o Espírito Santo guia os
crentes, nas noites de domingo, quando usava o livro O Peregrino. Quando eu
tinha três anos de idade, Deus o usou em nosso culto doméstico para me
convencer que o cristianismo era verdadeiro. Não importa o quanto tenha me
desviado nos últimos anos, nunca pude questionar seriamente a veracidade do
cristianismo e quero lhe agradecer por isso”[4]
A rapidez com que estes irmãos praticavam a teologia na família
pode ser observada na história. A forma como o presbiterianismo se desenvolveu
na Escócia, que se deu em diversos processos, especialmente entre 1643 e 1712,
nos dá sensação de que existia uma disposição vigorosa para o avanço da
proclamação e as transformações sociais. Mas nada disto poderia estar longe dos
arraias dos lares puritanos. Carlos I e Willian Laud, querendo impor a liturgia
anglicana tiveram que lidar com um surpreendente crescimento dos puritanos na
ocasião da convocação de eleições parlamentares. Para surpresa dos impositores
o Parlamento era de maioria puritana. Este é um efeito social, não sendo
somente um processo de evangelização nacional; o puritanismo brotava de suas
próprias casas. O Rev. David Lipsy nos dá uma boa definição para esta questão:
“Para os puritanos, a ligação do matrimônio era considerada ‘a
fonte e raiz principal e original de todas as outras sociedades’. Em outras
palavras, se os casamentos não eram bons, como poderia a igreja ou a sociedade
ser?”[5]
Com Carlos II não foi diferente. Se o seu pai, juntamente com
Willian Laud queriam impor uma liturgia oficial, Carlos II desejava um sistema
episcopal oficial. Então os puritanos e presbiterianos escoceses ergueram um
pacto nacional que defenderia até a morte a autonomia da igreja da Escócia. No
entanto, que se pode observar é que o relato pessoal de Joel Beeke sobre a vida
devocional de sua família puritana é uma síntese do modelo de vida que deu
vigor a todos os movimentos[6].
Alderi Souza nos deixa mais um relato que corrobora com a
narrativa pessoal de Joel Beeke: “A ênfase prática da teologia puritana levou-a
a dar grande atenção à ética pessoal e social em casos de consciência,
discussões sobre vocação e o relacionamento entre a família, a igreja e a
comunidade no propósito redentor de Deus.”[7]. Os puritanos acertadamente davam
atenção a família e como isto poderia produzir um efeito social. Se
desconsiderarmos este ponto crucial da vida puritana o puritanismo prático não
tem qualquer sentido.
Infelizmente o puritanismo é caricaturado como um movimento de
pessoas sisudas, legalistas e inflexíveis. Talvez por conta de sua intrepidez
teológica e social, seus inimigos, para os depreciar pintaram um quadro obscuro
destes irmãos notáveis. Este quadro obscuro não pode vencer o efeito legítimo
dos puritanos na Inglaterra, Escócia, Irlanda, Holanda, Países Baixos e mesmo
aqui no Brasil com a figura do Rev. Robert Kalley. O puritanismo não nasce
somente pelo desejo de purificar a igreja, todo puritano legítimo deseja que
sua família seja pura, que seus filhos temam a Deus. O crescimento relevante
dos puritanos precisa ser associado ao ardente desejo de dizer que “eu e minha
casa serviremos ao Senhor” (Js 24.15).
__________
[1]John Knox: Livro – “Sobre Liturgia e Adoração”, redigido por
Rev. Daniel Klein – Editora Os Puritanos, pg. 2
[2] Ian Murray: Livro – “As Escrituras e as Questões
Indiferentes – Um Problema Central na Controvérsia Puritana”, Editora Os
Puritanos, pg. 24
[3] Alderi Souza: Artigo: “Puritanos e Assembléia de Westminster
- OS PURITANOS: SUA ORIGEM E SUA HISTÓRIA”, link: http://www.mackenzie.br/7058.html
[4] Joel Beeke, “Adoração no Lar”, editora Fiel, 2011, p. 9, 10
[5] Rev. David Lipsy, trecho de “A Mulher Puritana”, palestra
proferida na “Conferência da Mulher – HNRC” no ano de 1998 pelo Pr. David
Lipsy. Traduzido e publicado em português originalmente na ”Revista Os
Puritanos” (Ano XII, nº 02:2004), republicado em Mulheres Piedosas com
permissão do Projeto Os Puritanos e do autor.
[6] Alderi Souza de Matos, “História do Movimento Reformado, O
PRESBITERIANISMO NA ESCÓCIA (2ª PARTE)”, Instituto Presbiteriano Makenzie, http://www.mackenzie.br/7015.html
[7] Alderi Souza de Matos, “História do Movimento Reformado, OS
PURITANOS: SUA ORIGEM E SUA HISTÓRIA”, Instituto Presbiteriano Makenzie, http://www.mackenzie.br/7058.html